Se existisse um tribunal da alimentação, os açúcares ocupariam constantemente o banco dos réus. Vira e mexe, integrantes desse grupo, caso da sacarose e da lactose, são julgados e condenados ao exílio nos cardápios ditos saudáveis.
A encrencada da vez é a frutose, o açúcar natural das frutas. Com um vasto inquérito, a substância tem sido uma das principais indiciadas pela crescente epidemia de obesidade nos Estados Unidos. Paira sobre ela, ainda, a acusação de desencadear danos às artérias. A ficha supostamente suja tem feito pessoas excluírem itens antes reverenciados, como banana, uva e companhia, do menu diário. Mas faz sentido virar a cara para a frutose? É hora de ouvir defesa e acusação e desfazer injustiças.
Quimicamente falando, a frutose é um monossacarídeo, ou seja, uma combinação de átomos que formam um carboidrato simples — aquele que, em excesso, faz a gente engordar e ficar mais predisposto a perrengues como o diabete. “Seu nome é originário da palavra latina fructus”, ensina a nutricionista Renata Juliana da Silva, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP). A designação foi escolhida porque os frutos são sua fonte mais importante, embora também seja encontrada no mel e nas hortaliças.
Esse açúcar tem lá suas particularidades. Além do alto poder adoçante, apresenta capacidade de absorver e reter água. Tais predicados despertaram a atenção de cientistas, que o isolaram em laboratório lá no século 19.
Sua popularidade aumentou mesmo nos idos de 1960, com o surgimento dos xaropes de milho — os pesquisadores descobriram que era possível usar o cereal para obter o ingrediente açucarado. Desde então, a frutose passou a competir com a sacarose, vinda da cana-de-açúcar e da beterraba, na composição de refrigerantes, sucos, molhos prontos, bolos, entre outros alimentos processados. Com acesso fácil e custo baixo, a curva de consumo entre os americanos disparou. Curiosamente, essa ascensão acompanha a escalada de ganho de peso observada nas últimas décadas naquela população.
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“Teoricamente, a frutose adicionada aos produtos industrializados é igual à versão in natura. Trata-se da mesma molécula”, afirma o nutricionista Caio Eduardo Reis, professor da Universidade de Brasília. Os efeitos nocivos, segundo diversos estudos, estão associados ao abuso no consumo.
E é por isso que nenhum entendido condena um cacho de uvas ou uma maçã por contribuir com a obesidade. Ora, seria necessário devorar bacias e bacias para alcançar o teor de uma bebida industrializada, por exemplo.
“Além de apresentar quantidade bem inferior de frutose, as frutas são ricas em fibras”, defende a nutricionista Nicole Trevisan, mestre pela USP. Não bastasse aquela forcinha ao intestino, o montante fibroso favorece o controle da glicose no sangue.
Ainda que a frutose seja definida como um carboidrato simples, a parceria com as fibras dentro dos vegetais anula potenciais impactos negativos. “Por isso, sempre que possível, o ideal é comer as frutas com casca e bagaço”, sugere.
Outro fator que limpa a barra dos vegetais é a riqueza em antioxidantes. “Essas substâncias ajudam a combater o estado pró-inflamatório provocado pelo excesso de açúcar e pelo aumento da gordura corporal”, resume o biólogo Fernando dos Santos, do Instituto do Coração, o InCor, em São Paulo.
Sob a casca ou na embalagem
Para ser adicionada ao alimento industrializado, a frutose pode vir de várias fontes e sob diferentes formas. E vale frisar: costuma ser bem concentrada. “Há a cristalina que, geralmente, é extraída de tubérculos e passa por processos químicos para
ser purificada”, exemplifica a nutricionista Nadine Marques, da RG Nutri, em São Paulo. Já o famoso xarope de milho, conhecido pela sigla HFCS (do inglês high fructose corn syrup), resulta da quebra de moléculas de glicose que são convertidas em frutose.
Exagero de frutose
“Quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza.” O velho ditado é bastante atual e entrega um cenário de excessos que deixa um rastro amargo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo da frutose nos países desenvolvidos subiu 250% nas duas últimas décadas.
Claro que muito desse percentual se deve ao já citado exagero nas doses de xarope de milho, sobretudo na terra do Tio Sam. Entretanto, há que pôr na conta a quantia oriunda de outra fonte importante, a sacarose.
Sim, o açúcar branco que vai no cafezinho tem culpa no cartório e merece ser arrolado no processo. Afinal, se voltarmos às aulas de química, sua fórmula nada mais é do que a junção de moléculas de glicose e, olha ela aí, a frutose.
E não é de hoje que o brasileiro tem fome de doce. Graças à fartura de cana-de-açúcar no tempo em que éramos colônia portuguesa, nosso paladar foi moldado de forma bem mais adocicada do que deveria.
Melou o rótulo
Para diminuir o risco de açucarar demais a dieta, vale adotar um olhar atento às embalagens. É verdade que as tabelas nutricionais não costumam mostrar explicitamente a designação da frutose isolada ou de qualquer outro parente edulcorante. Mas algumas pistas podem delatar a substância, como o aparecimento dos nomes xarope de milho (de novo!), sacarose e até mesmo açúcar. Segundo Renata Juliana, se esses termos despontarem em primeiro lugar na lista de ingredientes, é sinal de que o alimento extrapola na doçura.
“O consumo não precisa ser abolido, mas, sim, moderado. Aliás, como tudo quando pensamos em equilíbrio nutricional”, sentencia a nutricionista Maristela Strufaldi, coordenadora do Departamento de Nutrição da Sociedade Brasileira de Diabetes. Ir devagar no ingrediente ajuda a poupar todo o organismo.
“Embora ainda sejam necessárias mais pesquisas, é possível afirmar que o abuso colabora para o acúmulo de gordura na região da cintura”, comenta a endocrinologista Maria Edna de Melo, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica. Esse tipo de estoque engordurado não destrói apenas o desejo de desfilar de sunga ou biquíni no verão. Vai muito além da estética: ele eleva o risco de diabete e de problemas cardiovasculares.
O nutrólogo Hélio Vannuchi, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP ainda chama a atenção para o perigo da esteatose hepática. “A frutose pode ser considerada uma substância lipogênica”, afirma o especialista, que também é membro do conselho científico do ILSI Brasil — International Life Institute. Assim, adocicar a rotina além da conta facilita a deposição gordurosa em vários órgãos, principalmente no fígado.
Manchando a reputação da molécula doce, os achados do pesquisador Fernando dos Santos, no InCor, confirmam seu elo com a elevação dos níveis de triglicérides e das taxas de colesterol, além do aumento da pressão arterial e da resistência à insulina em animais. É um combo de encrencas capaz de lesar os vasos sanguíneos e provocar inflamações que servem de gatilho para o entupimento deles.
Ressalte-se, mais uma vez, que todas as provas expostas até agora estão ligadas à ingestão desmedida do ingrediente. Ou seja, penalizar as frutas seria uma injustiça. Ainda mais em uma realidade como a nossa: estima-se que apenas 10% dos brasileiros consumam as cinco porções de vegetais indicadas pela OMS — daí o corpo padece com a falta de fibras, vitaminas, minerais…
O fato é que existe só uma situação que requer quase que a exclusão completa desse açúcar do cardápio: é a chamada intolerância à frutose. Mas essa é uma condição rara, em que, por questões hereditárias, falta a enzima necessária para processar a substância. De resto, nenhum juiz bateria o martelo contra o pote de mel ou a fruteira. O veredicto: são inocentes, até que se exagere na dose.
Fonte: Abril
Pauta: Saúde
Redação: Regina Celia Pereira